quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Um contra o outro

Embatemos, como veados. 
Atiramos o corpo, um contra o outro.
Esperamos assim que a força nos rompa. 

Lutamos, não nos rendemos.
Jogamos tudo, um contra o outro. 
Sabemos que valerá a pena perder.

Rolamos, como animais.
Esquecemos o eu, um contra o outro.
Seremos só um que será muito mais.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Uma história sobre mosquitos

A minha professora de piano morreria de cancro alguns anos depois.

As minhas mãos suavam e esfarelavam as beiras da partitura fotocopiada. Eu esperava apenas a minha subida ao palco para mais uma audicão de fim de ano e só pensava no quanto odiava aquela merda toda. Eu tinha perfeita consciência da minha falta de talento. Mas pior, era o talento alheio. Como por exemplo o do fulano que tinham posto dessa vez a tocar antes de mim. Tocava divinamente. Quase o podia odiar. Mas ali, entrincheirado na entrada dos bastidores, só via a grande tampa negra do piano e as pernas dele. O pé que carregava elegantemente no pedal. E ponderava se alguma vez teria a coragem de lhe baixar as calças na casa de banho do teatro. A imaginação ajudava-me  a controlar o pânico. Eu não nasci para a música.
  
Isto veio-me à memória a propósito de um mosquito. Deitado, nu, com o meu amante, um mosquito que nos sobrevoa lembrou-me a minha professora de piano. A que morreu de cancro, soube eu anos depois.
  
A maior parte das vezes, por muito que gostemos das pessoas, elas têm na nossa vida apenas o papel de figurantes. Se tudo o que sobra é uma anedota, como no caso da minha professora de piano, já não é mau. Tive dois anos de aulas com ela, duas vezes por semana e o que resta disso é uma história sobre mosquitos.

Era de noite, estávamos nus na cama desfeita e quando o mosquito nos sobrevoou a baixa altitude e se pôs em manobras kamikaze que terminaram com ele desfeito entre uma almofada e a parede, eu lembrei-me dela.
  
Eu tocava pela ultima vez na aula a peça que ia interpretar em público quando um mosquito entrou pela janela e pousou na minha mão. Resisti estóicamente  durante algum tempo, mas é claro que a minha atencão se desviou de Bach para aquela criatura preparada  para me ferrar.
  
A minha professora assistia impassível e com um sorriso triste. Principalmente lembro-me desse sorriso. Era o resumo da história toda.
  
Quando a tortura acabou — eu afugentando o mosquito e interrompendo também a tortura que infligia a Bach — ela disse:
  
"Uma vez na Roménia, fomos requisitados como quarteto para tocar para os trabalhadores. Era servico cívico e não podiamos deixar de ir. Era suposto tocarmos enquanto as pessoas que trabalhavam no campo paravam para almoçar. Então lá estávamos nós num estradozinho, rodeados por camponeses que nunca sequer deviam ter visto um piano. O problema era que o sítio ficava mesmo ao lado de um pântanal e enquanto nós tocávamos havia umas melgas enormes, daquelas  de patas grandes, nojentas, sabes quais são? que nos mordiam todos e nós não podiamos parar de tocar. Saímos de lá todos inchados com umas babas enormes."
  
Rimo-nos.
  
"Percebes porque é que esse mosquito é insignificante? Tu hoje podes parar. Nós não podiamos."

E depois:
  
"Um músico não pára."
  
Foi a única vez que eu soube alguma coisa da vida dela. Eu até me esqueceria que ela era romena, não fosse o sotaque divertido. Morreu alguns anos depois e esta é a única coisa que soube da sua vida. E das aulas de piano, já me esqueci.
  
Um silêncio ficou a pairar entre nós, nus. Na escuridão eu estava ainda mais consciente do calor do corpo dele. Quando ele prestava atencão às minhas histórias eu amava-o ainda mais.


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Noruega

Contamos pequenas histórias. Dizemos banalidades e falamos, falamos e falamos, mesmo sem ter nada para dizer. 


À nossa volta há uma festa em norueguês. Risos e vozes que são nada. 


Lá fora a luz desfaz-se lentamente sem nunca chegar a noite. Abrimos as portas e saímos, vamos pelo relvado, andando na carícia do eterno anoitecer. 


Uma borboleta vem e pousa-me no ombro, moribunda, distraída. Ofereço-lhe um dedo e ela sobe. Ergo-a aos nossos olhos. 


Sentamo-nos na relva fria a olhar tão pequeno milagre que se deixa ficar assim sem medo. As nossas barbas, malfeitas, roçam-se numa carícia e rímo-nos. E voltamos a fazê-la. Depois o nosso olhar desvia-se das asas e fixa-se um no outro.Estamos tão juntos que nos aquecemos, respiramos o mesmo ar, sentimos a mesma pele arrepiada. O sopro do fjord, lá ao fundo do relvado, salpicado de ilhas.


No Japão, algum tempo depois, rompe uma tempestade, mas aqui a borboleta apenas bate as asas e voa. Seguimo-la com o peito pela vastidão aberta destas águas que rasgam montanhas e surpreendemo-nos com a grandiloquência pirosa do amor.


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segunda-feira, 15 de março de 2010

Dele

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Agora, quando viras a esquina pensas nele. 

Esta rua vai ser sempre a rua dele. Começa com casas baixas, dois ou três andares. Lá mais para o fundo há prédios altos. A calçada está partida aqui e ali. O asfalto tem buracos. Passa um autocarro a cada dez minutos. Não é bonita, mas é dele.

A primeira vez que o viste ele estava ali, perto daquela porta verde. Disse depois que tinha marcado ali para ser discreto. Aquela não era a porta dele. Mas sorriu quando te viu e isso importa mais que a porta. E tu sorriste de volta, como um espelho, espantado pela beleza. Aquela barba, aqueles olhos. Oh deus, a sorte!

Quando te estendeu a mão estendeste-lhe a tua, reflexo imediato, e logo aquela pele. Que quente a pele dele, que intenso, o primeiro toque do dia. (Não contam os apertos do metro para chegar ali.)

Dali seguiram para lá, para a casa dele, num daqueles prédios.

- Então?…

- Pois… e o tempo?

Falaram de nada. Seguiram lado a lado, mal se olhando.

Agora só, seguindo a rua, reparas nas lojas, reparas nos pássaros, notas o brilho de uma janela limpa. O cartaz da peça. O cartaz da ópera. E as eleições e as actividades da junta.

Hoje há mais sol, naquele dia sabe deus o que havia. Havia tusa. Havia já, tu suspeitas, uma espécie de amor.

Que pensaste dele? Oh sim, que era lindo, mas mais que isso. Tentaste imaginar como é alguém que mora nesta rua. Esta rua é dele. Sorris para dentro de ti.

Agora sabes ainda melhor que ele pertence aqui, que te pertence a ti.

Tiras a chave do bolso. É esta a porta, é esta aqui. A tua porta, da tua casa, na tua rua.

Agora és dele. Moras aqui.

Sorris.


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Faltas

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Tão longe quanto a saudade alcança estavas,
a uma distância maior que a de uma carta.
Nada do que possamos dizer interessa,
não são palavras, a vida. A vida não é feita de cartas.
... embora agora, por aqui, pareça feita de faltas.


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terça-feira, 9 de março de 2010

Quando me basto






Há dias em que me basto, em que me tenho a mim.
Nada dói, nada falha, nada falta.
Os dias bons não são assim.


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sábado, 6 de março de 2010

O teu corpo é barro








Agarro-te e o teu corpo é barro.
Soubesse eu melhor a tua forma e seria arte este amor.




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Outono






Um peso que se ergue, se abre e começa a espalhar.
Mais que um cheiro no ar da cidade, és Outono.
Que outro peso podia voar?

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Conselho






Morde tudo o que te aparecer pela frente
usa tudo como alimento.
As palavras não alimentam,
come a vida e os sentimentos.

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Soma


Agora tudo se explica numa linguagem de gestos.
Soma-se a minha pele à tua e o meu riso ao teu.

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Nós, as montanhas.


A nossa sombra. O teu corpo, agora meu.
Erguemo-nos como montanhas.
Sairemos da noite, brilhando.
Somos agora relevo no horizonte.


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