quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Amanhã

Naqueles dias bastava que ele viesse, metido pelos campos, descalço até, às vezes. Ficávamos juntos pela tarde, no quintal, a ver lama a secar, erva a crescer, aborrecidos de morte mas, ainda assim, felizes por o sol, ao pôr--se nos encontrar juntos, sentados à porta da cozinha, cansados de jogos. Ou então em dias de selvajaria, com a noite a dar por nós entre as silvas, na caça aos pássaros ou aos coelhos. Eu levava as manhãs contando horas, desde que a primeira luz fria me acordava até as tarefas e lições suspirarem. O dia arrastadamente longo por te saber a vir. Depois, tentava receber-te com cheiros de casa e boas vindas. Pão, bolos, sorvetes e o que mais se pudesse conjurar para garantir que amanhã voltarias, talvez até para me ver.

Hoje voltei a esta cidade (agora é cidade) e a esta casa e sentei-me nesta mesma cadeira de onde me punha a oscultar os canaviais do rio além e o baldio que tão conhecido era dos teus pés. Havia uma leveza nesses dias. Mas mesmo que agora só se sinta a escuridão que se entranhou nesta casa e que custa a sair dos armários da cozinha, do tapete da sala, há ainda nesta janela uma memória do sol da tarde, da tua corrida por entre aquelas ervas que continuam a crescer ali, nas traseiras. Talvez haja até um rasto dos meus sorrisos por aqui, esquecidos numa gaveta, arrumados a um canto, perdidos nesta desgraça que se foi acumulando.

Amanhã, quando voltar a acordar aqui, pela primeira vez em anos, hei-de auscultar no silêncio da manhã fria, a banheira, o lavatório, em busca desse suspiro, do sustido respirar, que era o esperar por ti. O dia longo que terminava em ti. E mesmo antes de começar a limpar, a tirar a humidade, o esquecimento, a este móveis, hei-de procurar no pequeno livro, abeirado ao telefone, o teu número. Talvez ainda exista para te encontrar. Não imagino já a tua voz. Decerto já mudou. Não te imagino de todo. Não serás o mesmo, mas, mesmo assim, quero chamar-te, como se fosse possível fazer-te correr outra vez pelos campos, descalço, para me vires ver. Amanhã.

Sem comentários: